Plano Analítico 2: Práticas espaciais e cotidianos
Plano Analítico 2: Práticas espaciais e cotidianos
Objetivo específico 2: Interpretar a fragmentação socioespacial, por meio das formas contemporâneas de diferenciação e desigualdade, a partir das práticas associadas ao cotidiano urbano.
A análise das práticas espaciais cotidianas dos citadinos constitui-se em segundo plano analítico deste projeto. Trata-se de práticas que “modelam nossos espaços de ação” (SOJA, 1996, p. 74) em atividades vinculadas ao habitat, ao trabalho, ao lazer, ao consumo e à circulação porque, por meio delas, imbuímos o espaço de símbolos, tornando-o parte de nós mesmos na medida em que dele nos apropriamos, mesmo que essas práticas nem sempre signifiquem modificação abrupta oumudança nos substratos espaciais (CATALÃO, 2010).
Para tratar das práticas, consideraremos o cotidiano, dimensão temporal na qual as experiências de vivência do espaço e do tempo, incluindo ação, práxis e imaginação, se realizam na fluidez e na repetição dos ritmos urbanos. Conforme Catalão (2010, p. 121), é “no quotidiano que os espaços da casa, das compras, dos passeios, do trabalho, ganham os significados que lhe são conferidos pelos usos, pois são formas por meio das quais os indivíduos apropriam-se do mundo [...] palpável e apropriável, o banal, os ‘espaços do vivido’”.
Como argumenta Caiafa (2003), habitar a cidade é experimentar a vizinhança com estranhos, em que o encontro, entendido como choque de alteridades, faz balançar identidades assumidas ou atribuídas, um sair de si, diante de outros mundos possíveis. Contudo, na cidade contemporânea, a experiência da alteridade tem sido obstruída pelos processos de segmentação e separação dos citadinos, o que chamamos, neste projeto, de fragmentação socioespacial, processo condicionado, no Brasil, pelos elevados níveis de desigualdade.
A fragmentação socioespacial pode ser entendida como um processo que tem origem na ação de citadinos de maiores ingressos, seja como consumidores dos novos produtos do mercado imobiliário, seja como habitantes da cidade que orientam suas práticas espaciais cotidianas no trabalho, no consumo e nos lazeres. Nestes domínios, estão permanentemente em busca de segurança, diferenciação social e autossegregação (MILANI, 2016).
Por outro lado, há aqueles citadinos para quem a fragmentação se expressa como “segregação imposta” (CORRÊA, 2004). O seu acesso à moradia, como primeira condição de acesso à cidade, viabilizado pelo Programa Minha Casa Minha Vida, por exemplo, tem sido acompanhado de distanciamento e abandono, atualizando um modo de fazer política de habitação social pautada unicamente no oferecimento da casa (ALCÂNTARA, 2018).
Assim, a fragmentação socioespacial consolida-se na vida cotidiana pela redução da mobilidade e da acessibilidade urbanas daqueles para quem a distância se constitui numa barreira espacial e pela evitação de certos espaços por parte de outros, tendo como consequências a desativação da vida pública e o reforço de exclusão, intolerância e medo.
Com isto, queremos dizer que as pessoas não simplesmente habitam a cidade, mas que a cidade as habita, interpela-as (MEJÍA, 2012), situa seu ser num certo sentido (BERQUE, 1999), como “campo de possibilidades” (VELHO, 1994) para a produção de seus “territórios existenciais” e as constitui como sujeitos num quadro de relações (MEJÍA, 2012), ou em “geometrias de poder” de espaço e tempo (MASSEY, 2000).
Há, na cidade assim produzida, uma subjetividade que circula e afeta os diferentes grupos sociais, cuja experiência oscila entre alienação e opressão, quando há uma submissão à subjetividade que recebem, e criação e expressão, quando entram em processos de singularização. É justamente esta última possibilidade de experiência de cidade que pode estar sendo anestesiada por políticas de subjetivação flexíveis, que exaltam até o limite a individualidade e o princípio da identidade e privatização (MEJÍA, 2012).
Nosso olhar tem como foco a “política de localização” em atuação nas cidades que é, ao mesmo tempo, uma ação de situar à margem certos setores da sociedade e uma reação, a partir desta posição, de práticas espaciais que sejam contra-hegemônicas (SOJA, 1996). Estamos considerando o efeito da distância na organização do cotidiano destes sujeitos sociais na sua forma de habitar a cidade a partir da margem, nas suas práticas espaciais como potenciais reveladoras das conjunções e disjunções tributárias do processo de fragmentação socioespacial.
Em que medida a mobilidade socioeconômica “dos de baixo” significa um enfrentamento a estes processos hegemônicos em curso? Ou estariam elas orientadas por processos de subjetivação tributários de uma “subjetividade neoliberal” (DARDOT e LAVAL, 2016) ou uma “razão neoliberal” (GAGO, 2014) que confirmaria justamente estes processos?
Considerando que este “eixo de opressão” da política de localização é transpassado por múltiplos outros eixos, como raça, gênero e idade – que Soja (1996), a partir de seu diálogo com bell hooks (1990), delineia – podemos pensar que as práticas espaciais dos situados à margem são muito variáveis. Desse modo, quais são os sujeitos que ultrapassam as distâncias ou, como expressa Diógenes (1998), transpõem os limites dos “espaços proscritos”? Quais as interferências que a presença de certos sujeitos marginais promove nos espaços dos quais foram banidos? E quem são aqueles para os quais a distância constitui-se como barreira intransponível?
Seguindo as pistas de Rankin (2003), tal proposição está ancorada numa tentativa de compreender como as práticas espaciais cotidianas dos habitantes das periferias pobres, tanto no lugar que habitam, quanto na sua circulação pela cidade, nas dimensões do trabalho e dos lazeres, estão sendo formatadas pelas injunções dos processos mais amplos da globalização da economia e da cultura, ora confirmando e sustentando tais processos, ora contestando-os. Em outros termos, como tais sujeitos sociais produzem, reproduzem ou reorientam as lógicas hegemônicas de produção da cidade contemporânea em contexto de fragmentação socioespacial?