Plano Analítico 3: Espaços públicos
Plano Analítico 3: Espaços públicos
Objetivo específico 3: Compreender os desdobramentos da lógica socioespacial fragmentária sobre o par espaço público-espaço privado.
As relações intrínsecas entre a cidade e seus espaços públicos têm sido amplamente reconhecidas, ao mesmo tempo em que as particularidades da moderna concepção de espaço público, às promessas nela implicadas e sua subversão, têm sido objeto de intenso debate. Atento à historicidade do conceito, Delgado (2011) identifica sua gênese e importância nas retóricas político-urbanísticas demonstrando, a partir de uma genealogia do emprego da própria expressão, que nem na obra de Lefebvre (2000), nem de Jacobs (1961), por exemplo, ela está presente. Até os anos 1980, empregava-se “espaço urbano”, “espaço social”, “espaço coletivo”, enquanto interpretações no campo da filosofia política eram produzidas por Arendt (1958), numa linha, e por Habermas (1962), em outra, que têm em comum sua interpretação como categoria política, mas diferenciam-se porque a primeira baseia-se num “modelo grego” de espaço público, enquanto o segundo adota um “modelo burguês”.
Para este projeto de pesquisa, tal debate importa uma vez que nenhuma das concepções mencionadas fornece parâmetros para a compreensão dos espaços públicos presentes nas cidades selecionadas para a pesquisa. Isso ocorre porque predomina uma sobreposição de interpretações que até então eram independentes, a do espaço público como conjunto de lugares de livre acesso e a do espaço público como âmbito no qual se desenvolve uma determinada forma de vínculo social e de relação com o poder, ou seja, no qual se engendram relações políticas (DELGADO, 2011), num contexto em que a fragmentação socioespacial evidencia a complexificação dos processos de produção do espaço urbano, ao caracterizar-se, entre outros aspectos, pelo “crescimento do número de enclaves” (SPOSITO e GÓES, 2013, p. 298).
Nessas interpretações, muitas vezes há pouca distinção entre espaço público e vida pública, o que dificulta a construção de uma concepção mais adequada de espaço público no período atual. Nem sempre a vida pública ou a realização da esfera pública da vida social e política é vivenciada somente em espaços públicos, uma vez que ela pode se efetivar em ambientes privados, ainda que de acesso e uso coletivo, como os shopping centers. Entretanto, dadas certas características de espaços como estes, com destaque para o direito legal e social de controle privado sobre eles, a realização da esfera pública não é efetiva ou ocorre de modo segmentado, incompleto. Do mesmo modo, em espaços públicos, em que as condições em tese para a realização da esfera pública são plenas, ela também pode ser interceptada por práticas de controle, seja do poder público, seja da iniciativa privada, que inviabilizam a sua plena consecução. Estas múltiplas possibilidades evidenciam a intensa articulação entre o público e o privado, mais que isso, uma efetiva interpenetração entre tais dimensões que ampliam o desafio que se apresenta para análise dessas dimensões, sobretudo políticas e sociais.
A identificação da sobreposição de interpretações, de um lado, e de fragilidades conceituais e analíticas, de outro, favorece a compreensão das constantes denúncias em relação a uma subversão generalizada e inescapável do espaço público moderno, feitas seja com base em análises estruturais sobre os processos que estão em curso nas cidades, seja apoiada em pesquisas empíricas, nas quais predominam as dimensões materiais e imateriais dos espaços públicos analisados, nas quais os desígnios do capital são sempre comprovados. Muitas vezes não possibilitam compreendê-lo como o espaço que tem relação direta com a vida pública, o que significa a comunicação entre diferentes indivíduos viabilizada pela intersubjetividade (GOMES, 2002, p. 160), ou seja, para que um não seja reduzido ao outro, estabelece-se no espaço público uma dada natureza de interlocução que precisaria para ser respeitada, da refundação deste espaço como espaço político.
Frente ao processo de fragmentação socioespacial e sua relação com a qualidade da sociabilidade urbana, questionamos: como apreender o significado, o alcance e a importância das práticas espaciais, ainda que fugazes e imprevistas, que implicam na possibilidade ou necessidade de se visualizar os outros, diferentes? Essa é uma das questões que este projeto de pesquisa deve ajudar a responder, partindo do pressuposto de que implica na contextualização dos espaços públicos pesquisados em realidades urbanas concretas das nove cidades selecionadas, no que se refere à predominância de muros e outros mecanismos de segurança e de controle social que não apenas privatizam, como impedem a circulação, o acesso, a presença e até a visibilidade dos outros, que são discriminados. Em outros termos, frente a tantas barreiras e limites, tão ostensivos como visíveis e não permeáveis, produzidos no âmbito de um processo de fragmentação socioespacial, como não valorizar a copresença, a visibilidade, a proximidade e a inovação que possibilitam os espaços públicos? Como não avaliar tais fatos em contraponto e combinação com a ideia de separação e segmentação, individualismo e indiferença responsáveis pelas condições objetivas e subjetivas, materiais e imateriais de redefinição contemporânea do par espaço privado-espaço público? Uma chave explicativa adequada para esses processos é a hegemonia do neoliberalismo, entendido como produtor de “certo tipo de relações sociais, certas maneiras de viver, certas subjetividades”. “Em outras palavras, com o liberalismo, o que está em jogo é nada mais nada menos que a forma de nossa existência” (DARDOT e LAVAL, 2016, p. 16).
É da espacialização bem como da espacialidade dessa “nova razão do mundo”, em seus aspectos políticos e sociais, sobretudo, que tratamos quando buscamos identificar as mudanças nas relações entre espaços públicos e privados. Como, então, não levar em conta uma das dimensões do processo de fragmentação socioespacial que é a intensa privatização sustentada pela valorização de “espaços privados, mas de acesso e uso coletivo”, como os shopping centers,
representados (e vendidos) como superiores à cidade, justamente porque capazes de neutralizar imprevisibilidades (SARLO, 2009)? Frente às relações dialéticas entre a homogeneidade, decorrente da relativa democratização do consumo e a renovação e ampliação das estratégias de distinção, e das denúncias recorrentes de que o consumo se tornou predominante também nos espaços públicos, as práticas espaciais possibilitam a identificação de disputas, sobretudo simbólicas, sobre esses espaços. Assim, hipóteses podem ser enunciadas subjacentes às questões: tais disputas conferem dimensão política aos espaços públicos? Isso se evidencia quando comparamos as disputas presentes nos “espaços privados de acesso e uso coletivo”, cada vez mais valorizados no âmbito do processo de fragmentação socioespacial?